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.desassossego 134 | p.154

Busco-me e não me encontro. Pertenço a horas crisântemos, nítidas em alongamentos de jarros. Deus fez da minha alma uma coisa decorativa.

flickr.com/letsuka

.na floresta do alheamento p.468

O movimento parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hábito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pária recordada – tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.

.desassossego 88 | p.116

Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de carinho com vontade de lhes dar beijos os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases fico tão pequeno e inofensivo, tão só um quarto tão grande e tão triste, tão profundamente triste! Afinal eu quem sou, quando não brinco?

.desassossego 380 | p.351

Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem memória do que tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida. Há em mim uma noção confusa de um intervalo incógnito, um esforço fútil de parte da memória para querer encontrar a outra. Não consigo reate-me. Se tenho vivido, esqueci-me de o saber.

.milímetros | sensações de coisas mínimas • p.465

Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes, . Os milímetros - que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco disso.

.ovelhas também lêem o livro do desassossego


.desassossego 316 | p.302

Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos que os insultos e as humilhações, que a vida e os viventes nos infligem, não cheguem a mais que a uma periferia despresível da sensibilidade, ao recinto externo da alma consciente.

.desassossego 357 | p.333

Meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos os homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga, acotovelando-se de palavras na grande procissão do Destino.

.desassossego 355 | p.332

Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar. Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.

.desassossego 7 | p.47

E recolho-me, como ao lar que os outros têm, à casa alheia, escritório amplo, da Rua dos Douradores. Achego-me à minha secretária como um baluarte contra a vida. Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar-  ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.

.desassossego 217 | p.224

Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão. Porém, é para nós que temos, como para um centro em torno do qual fazemos, como os planetas, elipses absurdas e distantes.

.desassossego 456 | p.414

De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação - a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar em mim.

p.448 | desassossego

Viver a vida em sonho e falso é sempre viver a vida. Abdicar é agir. Sonhar é confessar a necessidade de viver, substituindo a vida real pela vida irreal, e assim é uma compensação da inalienabilidade do querer viver.

.p.430 | desassossego

Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.

.desassossego 184

Não sei o que quero ou o que não quero. Deixei de saber querer, de saber como se quer, de saber as emocões ou os pensamentos com que ordinariamente se conhece que estamos querendo, ou querendo querer. Não sei quem sou ou o que sou. Como alguém soterrado sob um muro que se desmoronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro. E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como uma brisa, pelo começo da minha impaciência de mim.

.desassossego 480

Que noite! Prouvera a quem causou os pormenores do mundo que não houvesse para mim melhor estado ou melodia que o momento lunar destacado em que me desconheço conhecido.

.desassossego 433


(foto tirada na estação luz•sp)
Vivemos todos longínquos e anônimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.

.desassossego 58

Assim sou. Quando quero pensar, vejo. Quando quero descer na minha alma, fico de repente parado, esquecido, no começo do espiriral da escada profunda, vendo pela janela do andar alto o sol que molha de despedida fulva o aglomerado difuso dos telhados.

.desassossego 135

A análise constante das nossas sensações cria um modo novo de sentir, que parece artificial a quem analise só com a inteligência, que não com a própria sensação.

.desassossego 59

Suponho que a maioria daqueles, com que cruzo no acaso das ruas, traz consigo – noto-lho no movimento silencioso dos beiços e na indecisão indistinta dos olhos ou no alterar da voz com que rezam juntos – uma igual projeção para a guerra inútil do exército sem pendões.